“PRECISAMOS SUBIR NOS OMBROS DOS GIGANTES”

Essa é uma das frases preferidas do estimado professor da UFC, da UVA e da Faculdade Luciano Feijão, mestre e doutorando em sociologia, Joannes Forte, quando faz menção aos grandes pensadores que alargam nossos conhecimentos com suas idéias e concepções próprias acerca da nossa realidade social.

É enganosa a concepção de que a nossa organização social reflete o que há de mais próximo da perfeição e de justiça social. Infelizmente este assunto não interessa a grande maioria dos homens, pois vivemos a ilusão de que a humanidade está sempre evoluindo para melhor, e que hoje vivemos uma vida social superior à do homem primitivo. A verdade é que a harmonia inicial da humanidade se perdeu no decorrer de nossa opção histórica por esse modelo de sociedade em que vivemos.
Citando o antropólogo francês, Pierre Clastres, a filósofa brasileira Marilena Chauí em seu livro “Um Convite à Filosofia”, aborda o surgimento do poder (o texto é um pouco longo, mas leia, mesmo que não consiga de um só fôlego, por favor!):

 “Examinamos até aqui duas grandes respostas sociais ao poder: a resposta despótica e a política. Em ambas, a sociedade procura organizar-se economicamente – a forma da propriedade -, mantendo e mesmo criando diferenças sociais profundas entre proprietários e não-proprietários, ricos e

pobres, livres e escravos, homens e mulheres. Essas diferenças engendram lutas internas, que podem levar à destruição de todos os membros do grupo social.

 Para regular os conflitos, determinar limites às lutas, garantir que os ricos conservem suas riquezas e os pobres aceitem sua pobreza, surge uma chefia que, como vimos, pode tomar duas direções: ou o chefe se torna senhor das terras, armas e deuses e transforma sua vontade em lei, ou o poder é exercido por uma parte da sociedade – os cidadãos -, através de práticas e instituições públicas fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva.

Nos dois casos, surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigi-la, comandá-la, arbitrar os conflitos e usar a força. Há, porém, um terceiro caminho.

Fomos acostumados pela tradição antropológica européia a considerar as sociedades existentes na América como atrasadas, primitivas e inferiores. Essa visão nasceu do processo de colonização e conquista, iniciado no século XVI. Os conquistadores e colonizadores que aportaram na América interpretaram as diferenças entre eles e os nativos americanos como distinção hierárquica entre superiores e inferiores: para eles os “índios” não tinham lei, rei, fé, escrita, moeda, comércio, História; eram seres desprovidos dos traços daquilo que, para o europeu cristão, súdito de monarquias, constituiria a civilização.

Sem dúvida, os conquistadores encontraram grandes impérios na América: incas, astecas e maias. Por isso, os destruíram a ferro e fogo, exterminando as gentes, pilhando as riquezas e erigindo igrejas sobre seus templos. Todavia, exceto por esses impérios destruídos, os conquistadores encontraram as demais nações americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus. Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a escravidão, a evangelização e o extermínio.

A visão européia, depois compartilhada pelos brancos americanos, era e é etnocêntrica, isto é, considera padrões, valores e práticas dos brancos adultos proprietários europeus como universais e definidores da Cultura e da civilização.

Para o etnocentrismo, portanto, os nativos americanos possuíam e possuem sociedades carentes: falta-lhes o mercado (moeda e comércio), a escrita (alfabética), a História e o Estado. Possuem, portanto, sociedades sem comércio, sem escrita, sem memória e sem Estado.

O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que possuem escrita, mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica (isto é, não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica, gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos, inscrita com sinais específicos em objetos determinados e em espaços determinados. Somos nós que não sabemos lê-la. Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -, transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em geração. Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades possuem História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a Natureza, diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da Natureza e como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias a eles.

As sociedades indígenas estudadas por Clastres são sul-americanas, encontrando-se num estágio anterior ao das sociedades indígenas da América do Norte e dos três grandes impérios situados no México, na América Central e no norte da América do Sul. São, portanto, sociedades que não se organizaram na forma das chefias norte-americanas nem dos grandes impérios, mas inventaram uma organização deliberada para evitar aquelas duas formas de poder. As sociedades indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade privada nem divisão social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por sexo e idade. São comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são internamente homogêneas, unas e indivisas, possuindo uma História e um destino comuns. São sociedades do cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros diariamente. Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no despotismo). A chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe não manda; a comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma, de acordo com suas tradições e necessidades.

A oposição se estabelece não no interior da comunidade, mas em seu exterior, isto é, nas relações com as outras comunidades, portanto, no que se refere à guerra e às alianças de sangue pelo casamento. A função da chefia é representar a comunidade perante outras comunidades. 

O que é e o que faz o chefe, uma vez que não tem a função do poder, pois este pertence à comunidade e dela não se separa? O chefe possui três funções: doar presentes, fazer a paz e falar. Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade, o chefe deve, em certos períodos, oferecer presentes a todos os membros da tribo, isto é, devolver a ela o que ela mesma produziu. A doação de presentes é a maneira deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar desigualdade econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do Estado. Quando famílias ou indivíduos entram em conflito, o chefe deve intervir. Não dispõe de códigos legais para arbitrar o conflito em nome da lei. Que faz ele? A paz. Como a obtém? Apelando para o bom senso das partes, aos bons sentimentos, à memória da comunidade, à tradição do bom convívio entre as pessoas. Em suma, através dele a comunidade fala para reafirmar-se como comunidade indivisa. Excetuando-se a doação de presentes, a paz entre membros da comunidade, a diplomacia para tratar com outras comunidades aliadas e o direito a usar a força, liderando os guerreiros durante a guerra, a grande função da chefia situa-se na fala ou na Grande Palavra. Todas as tardes, o chefe se dirige a um local distante da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido, e ali discursa. Embora ouvido, ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do poder: canta sua força e coragem, seu prestígio, sua relação com os deuses, seus grandes feitos. Mas ninguém lhe dá atenção. Ninguém o escuta.

A Grande Palavra tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma, diariamente, o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a comandaria pela coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra, a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado.

Toda vez que o chefe não realiza as três funções internas e a função externa tais como a comunidade as define, todas as vezes que pretende usar suas funções para criar o poder separado, ele é morto pela comunidade. Evidentemente, nossa tendência será dizer que tal organização é própria de povos pouco numerosos e de uma vida sócio-econômica muito simples, parecendo-nos, a nós, membros de sociedades complexas e de classes, uma vaga lembrança utópica. Pierre Clastres, porém, indaga: Por que outras comunidades, mundo afora, não foram capazes de impedir o surgimento da propriedade privada, das divisões sociais de castas e classes, das desigualdades que resultaram na necessidade de criar o poder separado, seja como poder despótico, seja como poder político? Por que, afinal, os homens sucumbiram à necessidade de criar o Estado como poder de coerção social?”

Precisamos superar nossos defeitos, precisamos lutar contra a hipocrisia que teima em não nos abandonar, precisamos aprender a amar nossos semelhantes. Quem ama não explora. Não podemos transigir nunca na dura luta pelo bem. Eis aí as razões que me levam a não acreditar no sistema social em que vivemos.

1 Response to "“PRECISAMOS SUBIR NOS OMBROS DOS GIGANTES”"

  1. TODOS OS ASSUNTOS QUE ESTUDAMOS, EM TODAS ÀS ÁREAS (RELACIONADOS A VALORES REAIS E ABSTRATOS) VEM ACOMPANHADO DE UMA DIFICULDADE NATURAL PARA QUE OS ENTENDAMOS PLENAMENTE ATRAVÉS DE NOSSOS SENTIDOS. QUER QUEIRAMOS OU NÃO, QUANTO MAIS NOS APROFUNDAMOS EM DETERMINADOS ASSUNTOS MAIS DESCOBERTAS VIRÃO. ESTA CONDIÇÃO/SITUAÇÃO NOS CONDUZ AO CAMPO DA ESPECULAÇÃO/FILOSOFIA/METAFÍSICA, LEVANDO NOSSO CÉREBRO AO ESPAÇO ABSTRACIONAL/SEXTO SENTIDO, NASCEDOURO DE IDÉIAS QUE PODERÃO RESULTAR EM TESES, ANTÍTESES, SINTÉSES (TEORIAS DAS MAIS DIVERSAS POSSÍVEIS). EXISTIMOS COMO SER/ENTE ENQUANTO CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E COMO SER/ENTE ENQUANTO CONSCIÊNCIA COLETIVA. AOS DOIS ENTES, FOI PROPORCIONADO À DINÂMICA DA INTERAÇÃO (AÇÃO/REAÇÃO-OMISSÃO) QUE SE DARÁ DE FORMA ÉTICA OU ANTIÉTICA, VINDO ACOMPANHADAS DE SUAS RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS/DESDOBRAMENTOS/EFEITOS. O ESTÁGIO EVOLUTIVO DO SER ENQUANTO CONSCIÊNCIA COLETIVA CASAL/FAMÍLIA/CLÃ/TRIBO/NAÇÃO-ESTADO SE ESTUDADO PASSO A PASSO, LIVRE DE PRESSUPOSTOS, PASSAM POR UM PROCESSO EM QUE OS ENTES ENVOLVIDOS, PROPORCIONALMENTE AO SEU EMPODERAMENTO, A MEDIDA DE SUA INFLUÊNCIA, DIRETA OU INDIRETAMENTE, EM MAIOR OU MENOR GRAU (POR AÇÃO OU OMISSÃO), SÃO RESPONSÁVEIS PELO SEU ESTABELECIMENTO. A CONSTRUÇÃO DE EDIFÍCIOS SOCIAIS É PODER DELEGADO A HUMANOS (SE INSPIRADOS POR DEUS OU NÃO, É UMA OUTRA QUESTÃO). TANTO QUE A HISTÓRIA/TEOLOGIA AFIRMA QUE UM GRANDE SISTEMA JÁ FOI CRIADO, QUE OUTROS ESTÃO CRIADOS E QUE OUTRO GRANDE, MAS MUITO GRANDE MESMO, SE CRIARÁ. POR QUAIS NECESSIDADES FIZEMOS/FAZEMOS/FAZEREMOS SISTEMAS EXCESSIVAMENTES COERCITIVOS QUE DOMINAM/EXPLORAM NOSSOS SEMELHANTES É UMA QUESTÃO MAIS ABRANGENTE DO QUE SE POSSA SUPOR...

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