É enganosa
a concepção de que a nossa organização social reflete o que há de mais próximo
da perfeição e de justiça social. Infelizmente este assunto não interessa a
grande maioria dos homens, pois vivemos a ilusão de que a humanidade está sempre
evoluindo para melhor, e que hoje vivemos uma vida social superior à do homem
primitivo. A verdade é que a harmonia inicial da humanidade se perdeu no
decorrer de nossa opção histórica por esse modelo de sociedade em que vivemos.
Citando
o antropólogo francês, Pierre Clastres, a filósofa brasileira Marilena Chauí em
seu livro “Um Convite à Filosofia”, aborda o surgimento do poder (o texto é um
pouco longo, mas leia, mesmo que não consiga de um só fôlego, por favor!):
pobres, livres e escravos,
homens e mulheres. Essas diferenças engendram lutas internas, que podem levar à
destruição de todos os membros do grupo social.
Nos dois casos, surge o
Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigi-la, comandá-la,
arbitrar os conflitos e usar a força. Há, porém, um terceiro caminho.
Fomos acostumados pela
tradição antropológica européia a considerar as sociedades existentes na
América como atrasadas, primitivas e inferiores. Essa visão nasceu do processo
de colonização e conquista, iniciado no século XVI. Os conquistadores e
colonizadores que aportaram na América interpretaram as diferenças entre eles e
os nativos americanos como distinção hierárquica entre superiores e inferiores:
para eles os “índios” não tinham lei, rei, fé, escrita, moeda, comércio,
História; eram seres desprovidos dos traços daquilo que, para o europeu
cristão, súdito de monarquias, constituiria a civilização.
Sem dúvida, os
conquistadores encontraram grandes impérios na América: incas, astecas e maias.
Por isso, os destruíram a ferro e fogo, exterminando as gentes, pilhando as riquezas
e erigindo igrejas sobre seus templos. Todavia, exceto por esses impérios
destruídos, os conquistadores encontraram as demais nações americanas
organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus. Transformaram
o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos americanos.
Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a escravidão, a
evangelização e o extermínio.
A visão européia, depois
compartilhada pelos brancos americanos, era e é etnocêntrica, isto é, considera
padrões, valores e práticas dos brancos adultos proprietários europeus como
universais e definidores da Cultura e da civilização.
Para o etnocentrismo,
portanto, os nativos americanos possuíam e possuem sociedades carentes: falta-lhes
o mercado (moeda e comércio), a escrita (alfabética), a História e o
Estado. Possuem, portanto, sociedades sem comércio, sem escrita, sem
memória e sem Estado.
O antropólogo francês Pierre
Clastres estudou essas sociedades por um prisma completamente diferente, longe
do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que possuem escrita, mas que esta não é
alfabética nem ideográfica ou hieroglífica (isto é, não é a escrita
conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica, gravada nos corpos
das pessoas por sinais específicos, inscrita com sinais específicos em objetos
determinados e em espaços determinados. Somos nós que não sabemos lê-la.
Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -,
transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em geração.
Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades possuem
História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a Natureza,
diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da Natureza e
como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais sociedades são contra
o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são sociedades sem
comércio e sem Estado, mas contrárias a eles.
As sociedades indígenas
estudadas por Clastres são sul-americanas, encontrando-se num estágio anterior
ao das sociedades indígenas da América do Norte e dos três grandes impérios
situados no México, na América Central e no norte da América do Sul. São,
portanto, sociedades que não se organizaram na forma das chefias
norte-americanas nem dos grandes impérios, mas inventaram uma organização deliberada
para evitar aquelas duas formas de poder. As sociedades indígenas são
tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade privada nem divisão social do
trabalho, não havendo, portanto, classes sociais nem luta de classes. A
propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por sexo e idade. São comunidades
no sentido pleno do termo, isto é, são internamente homogêneas, unas e
indivisas, possuindo uma História e um destino comuns. São sociedades do
cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros
diariamente. Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não
forma uma instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no
despotismo). A chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O
chefe não manda; a comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma,
de acordo com suas tradições e necessidades.
A oposição se estabelece não
no interior da comunidade, mas em seu exterior, isto é, nas relações com as
outras comunidades, portanto, no que se refere à guerra e às alianças de sangue
pelo casamento. A função da chefia é representar a comunidade perante outras
comunidades.
O que é e o que faz o chefe,
uma vez que não tem a função do poder, pois este pertence à comunidade e dela
não se separa? O chefe possui três funções: doar presentes, fazer a paz e
falar. Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade, o
chefe deve, em certos períodos, oferecer presentes a todos os membros da tribo,
isto é, devolver a ela o que ela mesma produziu. A doação de presentes é a
maneira deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém
possa concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar
desigualdade econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a
necessidade do poder do Estado. Quando famílias ou indivíduos entram em
conflito, o chefe deve intervir. Não dispõe de códigos legais para arbitrar o
conflito em nome da lei. Que faz ele? A paz. Como a obtém? Apelando para o bom
senso das partes, aos bons sentimentos, à memória da comunidade, à tradição do
bom convívio entre as pessoas. Em suma, através
dele a comunidade fala para reafirmar-se como comunidade indivisa.
Excetuando-se a doação de presentes, a paz entre membros da comunidade, a diplomacia para tratar com
outras comunidades aliadas e o direito a usar a força, liderando os guerreiros
durante a guerra, a grande função da chefia situa-se na fala ou na Grande
Palavra. Todas as tardes, o chefe se dirige a um local distante da aldeia, mas
visível e de onde possa ser ouvido, e ali discursa. Embora ouvido, ninguém deve
dar-lhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando à obediência. Que diz ele?
Diz a palavra do poder: canta sua força e coragem, seu prestígio, sua relação
com os deuses, seus grandes feitos. Mas ninguém lhe dá atenção. Ninguém o
escuta.
A Grande Palavra tem
significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma, diariamente, o risco e o
perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual
devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade
impede o advento do poder como algo separado dela e que a comandaria pela
coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra, a sociedade se
coloca contra o surgimento do Estado.
Toda vez que o chefe não
realiza as três funções internas e a função externa tais como a comunidade as
define, todas as vezes que pretende usar suas funções para criar o poder
separado, ele é morto pela comunidade. Evidentemente, nossa tendência será
dizer que tal organização é própria de povos pouco numerosos e de uma
vida sócio-econômica muito simples, parecendo-nos, a nós, membros de sociedades
complexas e de classes, uma vaga lembrança utópica. Pierre Clastres, porém,
indaga: Por que outras comunidades, mundo afora, não foram capazes de
impedir o surgimento da propriedade privada, das divisões sociais de castas e
classes, das desigualdades que resultaram na necessidade de criar o poder
separado, seja como poder despótico, seja como poder político? Por que, afinal,
os homens sucumbiram à necessidade de criar o Estado como poder de coerção
social?”
Precisamos
superar nossos defeitos, precisamos lutar contra a hipocrisia que teima em não
nos abandonar, precisamos aprender a amar nossos semelhantes. Quem ama não
explora. Não podemos transigir nunca na dura luta pelo bem. Eis aí as razões
que me levam a não acreditar no sistema social em que vivemos.
TODOS OS ASSUNTOS QUE ESTUDAMOS, EM TODAS ÀS ÁREAS (RELACIONADOS A VALORES REAIS E ABSTRATOS) VEM ACOMPANHADO DE UMA DIFICULDADE NATURAL PARA QUE OS ENTENDAMOS PLENAMENTE ATRAVÉS DE NOSSOS SENTIDOS. QUER QUEIRAMOS OU NÃO, QUANTO MAIS NOS APROFUNDAMOS EM DETERMINADOS ASSUNTOS MAIS DESCOBERTAS VIRÃO. ESTA CONDIÇÃO/SITUAÇÃO NOS CONDUZ AO CAMPO DA ESPECULAÇÃO/FILOSOFIA/METAFÍSICA, LEVANDO NOSSO CÉREBRO AO ESPAÇO ABSTRACIONAL/SEXTO SENTIDO, NASCEDOURO DE IDÉIAS QUE PODERÃO RESULTAR EM TESES, ANTÍTESES, SINTÉSES (TEORIAS DAS MAIS DIVERSAS POSSÍVEIS). EXISTIMOS COMO SER/ENTE ENQUANTO CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E COMO SER/ENTE ENQUANTO CONSCIÊNCIA COLETIVA. AOS DOIS ENTES, FOI PROPORCIONADO À DINÂMICA DA INTERAÇÃO (AÇÃO/REAÇÃO-OMISSÃO) QUE SE DARÁ DE FORMA ÉTICA OU ANTIÉTICA, VINDO ACOMPANHADAS DE SUAS RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS/DESDOBRAMENTOS/EFEITOS. O ESTÁGIO EVOLUTIVO DO SER ENQUANTO CONSCIÊNCIA COLETIVA CASAL/FAMÍLIA/CLÃ/TRIBO/NAÇÃO-ESTADO SE ESTUDADO PASSO A PASSO, LIVRE DE PRESSUPOSTOS, PASSAM POR UM PROCESSO EM QUE OS ENTES ENVOLVIDOS, PROPORCIONALMENTE AO SEU EMPODERAMENTO, A MEDIDA DE SUA INFLUÊNCIA, DIRETA OU INDIRETAMENTE, EM MAIOR OU MENOR GRAU (POR AÇÃO OU OMISSÃO), SÃO RESPONSÁVEIS PELO SEU ESTABELECIMENTO. A CONSTRUÇÃO DE EDIFÍCIOS SOCIAIS É PODER DELEGADO A HUMANOS (SE INSPIRADOS POR DEUS OU NÃO, É UMA OUTRA QUESTÃO). TANTO QUE A HISTÓRIA/TEOLOGIA AFIRMA QUE UM GRANDE SISTEMA JÁ FOI CRIADO, QUE OUTROS ESTÃO CRIADOS E QUE OUTRO GRANDE, MAS MUITO GRANDE MESMO, SE CRIARÁ. POR QUAIS NECESSIDADES FIZEMOS/FAZEMOS/FAZEREMOS SISTEMAS EXCESSIVAMENTES COERCITIVOS QUE DOMINAM/EXPLORAM NOSSOS SEMELHANTES É UMA QUESTÃO MAIS ABRANGENTE DO QUE SE POSSA SUPOR...
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